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Marta Pereira da Costa por Gonçalo Frota

Em muita da mais afamada iconografia da fadista Severa (primeiro grande mito da história do fado), a cantora precocemente falecida aparece de longas saias e pose desafiadora, empunhando uma guitarra portuguesa. Nessas imagens, é invencível. Severa morreu a 30 de Novembro de 1846 e passados 160 anos a guitarra nas mãos de uma mulher continua a ser uma raridade e parece exigir a mesma atitude destemida e afirmativa. Fora o exemplo de Luísa Amaro, discípula de Carlos Paredes, foi até há um par de anos tarefa demasiado inglória tentar encontrar outro nome que furasse essa hegemonia masculina. Mas isso, de ser mulher num mundo sobrepovoado de homens, foi insignificante no dia em que Marta Pereira da Costa, uma empenhada aluna de piano desde os quatro anos e a caminho de se formar em engenharia civil, foi levada por insistência do pai à presença de Carlos Gonçalves para ter uma aula de guitarra. Tinha 18 anos e o seu mundo ficou virado do avesso.

Marta nunca tinha antes contactado com a guitarra, não era frequentadora de casas de fado, não fazia sequer ideia de que Carlos Gonçalves acompanhara Amália Rodrigues nos últimos anos da carreira da voz maior do fado e compusera fados como “Lágrima” e “Grito”. Mas bastou-lhe ouvir o timbre da guitarra, experimentar as suas mãos a correr pelo instrumento e extrair-lhe o inimitável trinado para ser tomada por uma paixão tão repentina e arrebatadora que sabia não poder escapar-lhe. “Gostei imenso da aula que tive com o Carlos Gonçalves e ele emprestou-me logo uma guitarra para levar para casa”, conta. “Comecei interessadíssima em querer descobrir a afinação, em perceber como poderia tirar partido do instrumento, e pedi para continuar a ter aulas.” A guitarra tornou-se quase uma obsessão na sua vida: queria saber e ouvir quem tocava, queria estudar todos quantos já tinham tocado, passou a frequentar casas de fado para sorver o conhecimento directamente dos guitarristas e acabou mesmo por se desleixar no piano e suspender o Conservatório quando lhe faltava pouco mais de um ano para terminar o curso geral.

 

Mesmo tendo sido o pai de Marta Pereira da Costa a colocá-la na rota da guitarra, a verdade é que começou a achar “menos graça” à súbita paixão da filha quando, num repente, esta começou a dedicar todo o seu tempo livre a aperfeiçoar a sua técnica ou a passar as suas noites no Clube de Fado a observar e a imitar aquilo que Mário Pacheco tocava. O guitarrista, carinhosamente, chamava-lhe então “copy-paste”, devido à sua espantosa capacidade de ver, ouvir e repetir sem mácula. As suas noites eram então passadas sobretudo no Clube de Fado, aprendendo com Pacheco e com Fontes Rocha – o guitarrista que mais a incentivou a persistir e a não abandonar o seu trajecto, a quem agradece sempre antes de entrar em palco –, ainda que logo de manhã cedo tivesse de se apresentar nas aulas da licenciatura em Engenharia Civil no Instituto Superior Técnico, sempre “cheia de sono”.

 

Tal como fez com Mário Pacheco, fez também com outros guitarristas: apresentava-se nas casas de fado levando consigo a guitarra, apresentava-se e pedia para se sentar ao lado do guitarrista residente e seguia-lhe os passos. A recepção foi óptima. “Não tinha vergonha nenhuma porque, quando quero fazer uma coisa, vou atrás, tento chegar às pessoas e pedir ajuda”, recorda. “Achavam-se imensa graça, talvez pelo facto de ser uma miúda a querer tocar e isso não ser muito comum.” E assim Marta foi acumulando vários professores, de Carlos Gonçalves e Mário Pacheco a Fontes Rocha e Ricardo Rocha, procurando todos quantos gostava de ouvir e junto dos quais queria recolher ensinamentos que a fizessem melhor guitarrista e a levassem a crescer. Aos poucos, no entanto, começava a ouvir vozes de terceiros que a aconselhavam a não ter aulas com tantos guitarristas, impelindo-a a seguir uma direcção própria.

 

Só que a necessidade para o estabelecimento da sua própria linguagem não era ainda uma prioridade. Apesar da sua inexcedível aplicação à guitarra, que a levaria inclusivamente a forçar o corpo para lá dos limites, tocando até à exaustão, até ter tendinites e ser tomada por dores que tentava interpretar como a sua via-sacra para o domínio do instrumento, nunca descuraria os estudos e, terminada a licenciatura, logo começou a trabalhar num gabinete de projectos de pontes, transitando, mais tarde, para o LNEC (Laboratório Nacional de Engenharia Civil) enquanto investigadora. Ainda que a vida lhe corresse bem, “não estava 100% feliz”. “Ainda demorou oito anos até me encher de coragem e me dedicar só à música”, conta.

 

Essa decisão foi precipitada pelo desafio do seu então marido, o fadista Rodrigo Costa Félix, para criar os acompanhamentos do álbum Fados de Amor (2011). Quando a proposta lhe chegou, no entanto, Marta Pereira da Costa não se sentia ainda preparada para assumir esse papel sozinha. Até à altura, todas as suas actuações a acompanhar fado tinham acontecido ao lado de Mário Pacheco e a gravação de um álbum não era algo que assumisse de ânimo leve. Aceitou então o desafio na estrita condição de que se o resultado não estivesse à altura seria contratado um profissional para “fazer o trabalho como deve ser”, Marta mergulhou nesta responsabilidade investigando aturadamente todos os discos de fados e de guitarradas a que conseguia deitar a mão, criando acompanhamentos e introduções, testando todas as soluções e passando-as pelo crivo dos seus mestres. Durante um ano, viveu para o disco que havia de gravar e os concertos de promoção que se seguiriam. Foi um período de enorme crescimento e aprendizagem enquanto guitarrista, tão produtivo e fascinante que percebeu que não podia voltar atrás. A partir de Fados de Amor, deixava de ser uma empenhada curiosa pela guitarra e tornava-se uma guitarrista por direito próprio. E imprimia o seu nome na história ao tornar-se a primeira mulher responsável pela totalidade das guitarras num disco de fado.

 

“A natureza encarregou-se de me confirmar que a decisão estava certa”, diz. Os concertos que começaram a surgir, as entrevistas que começou a dar, tudo lhe foi mostrando que havia espaço para si enquanto guitarrista profissional e um interesse genuíno no seu percurso. Mas o processo de Fados de Amor traria ainda uma outra revelação. Em todos os seus anos de estudo de piano, Marta nunca fora capaz de se libertar das pautas, aplicando-se na interpretação rigorosa das peças, mas sem ousar afastar-se das notas desenhadas nas partituras. E na guitarra atrevia-se a criar os seus acompanhamentos para o fado, mas desconhecia que o seu ímpeto criativo estivesse tão vivo que lhe pudesse permitir sonhar em criar reportório para o instrumento. Até ao dia em que, num ensaio com o seu habitual violista da altura, Pedro Pinhal, este se lançou numa espontânea sequência de acordes e, sem aviso, Marta desatou a segui-lo livre de guião. “Não sei o que me deu, comecei a improvisar por cima e pus a gravar”, recorda. Em três minutos, o tempo da gravação, “Viagem” saiu como se sempre tivesse existido e ela se limitasse, uma vez mais, a seguir aquilo que pauta ditava. A ser uma pauta, seria afinal uma pauta íntima, só sua e nunca antes ouvida.

 

Depois de “Viagem”, a convite da realizadora Ana Rocha, Marta Pereira da Costa compôs “Minha Alma” para uma curta-metragem com o mesmo nome, conduzida pelo instinto após ler o argumento. Seria o segundo momento mágico a antecipar um disco na guitarra para além dos fados. “Não conseguia perceber como aquilo me estava a acontecer e ficava arrepiada”, confessa. “Esses dois primeiros temas foram muito rápidos a fazer.” Aos poucos, começava a anunciar-se o seu primeiro álbum em nome próprio e a certeza de que é nas suas criações instrumentais que a sua essência enquanto guitarrista fica mais profunda e fielmente fixada: “’Minha Alma’ é o tema que mais me emociono a tocar e no qual me sinto mais verdadeira. É um tema que me dá força para fazer tudo o resto. E aquilo que queria passar neste disco era mesmo a minha alma, a minha sensibilidade, a minha maneira de tocar.”

 

Essa maneira de tocar é tão mais surpreendente quanto Marta Pereira da Costa, ajudada pelo pianista e produtor Filipe Raposo, deu forma a um álbum que viaja tanto pelo fado quanto pela música popular portuguesa, pela world music e pelo jazz, diluindo fronteiras e promovendo encontros da guitarrista com músicas e músicos inesperados. Estão lá Camané – a primeira das vozes de fado por que se apaixonou – numa estarrecedora interpretação de um tema de Alfredo Marceneiro; e Carlos Paredes – o primeiro dos guitarristas por que se deslumbrou – na sua interpretação singular de “Canto do Rio”, ambos contextualizando Marta na tradição de onde emerge. Mas logo depois a guitarra abre-se ao mundo, escancara portas que ninguém tinha ainda ousado experimentar. Por duas simples razões: discos tradicionais de guitarradas já existem em número suficiente para que o mundo não esteja desesperadamente à espera que chegue mais um; e porque a natureza de Marta está longe de poder ser confinada a esse respeitável mas limitado universo sonoro.

 

Além de Camané, Marta chama para cantar a seu lado duas vozes fundamentais na sua vida: Rui Veloso e Dulce Pontes. Ambos contribuem com temas originais (no caso de Veloso, música para uma letra de Manuela de Freitas) que reforçam a profunda marca portuguesa presente na música da guitarrista. E essa marca não desaparece, curiosamente, nas suas colaborações de absoluta surpresa: com a cantora iraniana Tara Tiba, que o violista Diogo Clemente encontrou num festival da Austrália e gravou num quarto de hotel, intuindo uma ligação especial entre duas mulheres que rompem as tradições musicais dos seus países (no Irão as mulheres não podem cantar a solo); e com o lendário baixista de jazz camaronês Richard Bona, que Marta conheceu numa masterclass em Lisboa, em 2014, e a quem se dirigiu no final com todo o desplante convidando-o para participar neste disco que estava a preparar. “How good are you?”, perguntou-lhe Bona. “I’m the best, I’m the only one”, respondeu-lhe, palavras carregadas não de presunção mas da confiança no percurso que começava a despontar e que convenceram o músico a acompanhá-la num tema de notável invenção para o universo da guitarra portuguesa.

 

A tudo isto junta-se ainda o belíssimo diálogo para duas guitarras, “Ícaro”, Marta na portuguesa, Pedro Joia na clássica com travo a flamenco, e “Folia”, uma encomenda da guitarrista ao músico de jazz Mário Laginha. Familiarizado com a escrita para guitarra que desenvolve para o reportório do seu Novo Trio, Laginha apresentou a Marta um tema “dificílimo de tocar” que representou maior desafio interpretativo de todo o disco. Foram muitas horas de estudo para domar a música e a primeira vez que, no domínio da guitarra, teve de aprender uma composição através de partitura.

 

Todo o álbum espelha fielmente a natureza de Marta Pereira da Costa. É um disco feito de encontros, de partida em busca das pessoas, de homenagem àqueles que, sabendo-o ou não, a ajudaram a chegar até aqui. E é um registo arriscado e fascinante na assunção da diferença. Não apenas por se tratar de uma mulher a reclamar o instrumento que transporta de forma inequívoca o som de Portugal, mas sobretudo porque nunca antes se ouviu a guitarra portuguesa soar assim. E esse é um dos maiores augúrios e das mais generosas contribuições para a história do instrumento: não repetir apenas o passado, mas ousar vislumbrar-lhe um futuro.

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